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José Amélio Rosa Sobrinho - A poesia na roça.

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Quem conheceu o Zé Amélio (1923 - 2001), no auge da sua existência, perdeu o direito de ser pequeno.
Com ele, tão cedo descobri que a velhice é o maior trunfo da juventude, assim como qualquer idade é puramente uma aritmética atemporal e insignificante.

por José Márcio Castro Alves

In Vitro, observamos apenas a obediência natural da física e da bioquímica. In Vita, desdenhamos esta hipótese e ignoramos que a vida é a nossa única chance.
Em que pesem os frutos de uma educação patriarcal mais que imperfeita dos privilegiados rebentos das primeiras décadas do Século XX, atirados ao meio dos que exaltaram sobremaneira muito mais a estátua do que o homem na significação integral do termo, cabe aqui um pormenor relevante: a memória de um homem extraordinário, que viveu e morreu com o carisma dos artistas e a dignidade dos arautos da concórdia.
Victor Hugo dizia que na hora da morte, não importa a posição do corpo. A alma sempre estará de joelhos.
Aos vinte anos - 1973 - consegui me aproximar do Zé Amélio. Um ano de "República Jacaré", tia Celita na cozinha do São Luís, serenatas, mocidade, violão e poesia. Era um tempo áureo e frutífero, do querido Gonçalo Espelho e das saudosas bravatas, da paciência num jogo de buraco e dos berreiros passionais de uma trucada, das tarrafadas piscosas na corredeira do Boa Sorte (Rio Sapucahy) e do cantar majestoso de galos heróicos.
José Amélio Rosa Sobrinho (1.923 - 2.001), o nosso querido Zé Amélio, mostrou-se, em vida, como o plenipotenciário de seus contemporâneos por ser um autodidata que detinha a sabedoria dos livros e o dom de uma oratória única, inigualável, calcada no repertório pomposo e grandioso dos poetas barrocos e românticos, enveredado aos modernos à guisa de um parnasianismo soberbo e inocente.
Confessava que a velha escola positivista e brasilianista o influenciou desde os bancos escolares, especialmente os professores do antigo Champagnat, norteando-o em exemplos vivíssimos de um patriotismo deveras acentuado, levado a cabo por toda sua jornada terrena.
--- São Paulo, pátria de heróis, berço de guerreiros... Tu és o ouro mais brilhante, o mais belo florão dos brasileiros...
Ao som dos aplausos, revelava-se garboso, ao mesmo tempo em que humilde permanecia, replicando em tempo hábil o que a lembrança lhe cobrava.
Sempre marcou presença como um observador cauteloso e tenaz, astuto e severo, pois impunha um respeito diferenciado ao término da sentença, por dominar, como ninguém, de improviso, frases magníficas que brotavam das canhadas longínquas de uma memória assustadoramente invejável, sempre comparando o arremate aos grandes autores da literatura universal.

Onde quer que estivesse, ao entonar um poema, roubava a cena em silêncio de cicios, com declamações que exaltavam o gosto peculiar de almas carentes ante um artista genuíno a pregar um evangelho de pensamentos vividos e formulados, jogados à sorte de dezenas de ouvidos estacados.
Céptico como a premissa básica dos pesquisadores talentosos, era arrebatador e intransigente. Ao elogiar, erguia um pedestal. Ao criticar, cavava um túmulo.
Um eterno conselheiro, cuja vocação para magistrado fora castrada, talvez, por circunstâncias atribuídas aos afazeres rotineiros dos fazendeiros do seu tempo: a fazenda São Luís, seu primeiro e único berço, como também por um matrimônio antecipado pelo fogo do amor que o consumia, o tema predileto de seus versos.
A juventude, o romance e a paixão, nítidos dizeres do seu brasão.
Mas jamais abriu mão dos valores morais e acadêmicos que o moldaram numa figura ímpar, a despeito de uma rigidez incoercível marcada a ferro e a fogo, como os grandes escultores que assinam em pedra.
Argumentava que a forma, as regras e as leis deviam ser seguidas por significarem a única salvação dos medíocres e dos insensatos, o consolo indispensável às almas de muitos que o rondavam em notório desconforto intelectual.
Como poucos da sua geração, sabia que a residência da sabedoria estava nas obras literárias que lia e relia com afinco, numa praxe rotineira e cotidiana que impôs ao longo de toda sua vida.
Quem não o viu no frescor das manhãs, sentado na cadeira preferida do ''Fazendão'', debruçado horas a fio sobre uma leitura interminável?
Por certo rememorava a sua casa que, desde os primórdios, igualava-se a uma confraria festiva e repleta de mocidade onde, a cozinha, mostrava-se como a sala de visitas, um clube dos adeptos às mais variadas iguarias, saídas de um fogão a lenha que nunca se apagava.
Ao som de cantilenas e modinhas, quantos trovadores não o viram deleitar-se com as cantigas de amor em noites nostálgicas de lua, ou nas tardes fagueiras, à sombra dos laranjais?
Em meio à fraternidade do abraço de um recém chegado, reinava não somente a abundância com excessos indescritíveis que a muitos suplantaram. Não raro se viam centenas de abismados a rodear o aconchego do braseiro ou das panelas da fartura, que exalavam os aromas das mais variadas e patenteadas guloseimas, todas requintadas com toques de classe genuinamente improvisados, herdadas dos ancestrais e sempre cultuadas em histórias e causos, adornadas, de quando em vez, pela algaravia de uma convivência primordialmente alegre, límpida e feliz.
Zelava pelos seus feitos como uma onça lambendo a cria, no instinto natural dos que sentiram na carne as tragédias e as agruras que o induziam a rezar para que ninguém tivesse que prová-las.
--- O que eu estou passando agora, não desejo nem ao meu pior inimigo, testemunhei de sua boca diante da viuvez precoce, vinda de chofre, sem aviso, na quadra saudosa de um então cinqüentenário que continuaria amando a vida, mesmo apunhalado pela fatalidade.
Encarou-a estóico, reto, impassível, ante a dor da adversidade.
Combatente atingido, jamais bambeou a rédea, pois sua meia dúzia de filhos e toda sua grandiosa família ajudaram a segurar, junto ao velho timoneiro, o leme da bonança e da esperança, seguindo sempre a rota natural da vida e encarando os espinhos como degraus necessários para se poder um dia tocar no veludo das flores.
--- O homem tem que ser pobre, dizia ele prefaciando algum soneto.
--- Pobre corporalmente, mas rico no espírito, arrematava.
Foi poeta, sonhou e amou na vida. Sofreu e sorveu o fel que jaz em todas as teriagas, presenciando os pais, incontáveis amigos e parentes, os irmãos Luizinho e Tonho Rosa, todos, partirem de repente, não mais que de repente...

Faísca e Zé Amélio, 60 anos de amizade

Velhos companheiros de pescarias e ranchadas memoráveis, prédicas de mesa farta em comunhão com a beleza dos rios, das manhãs ensolaradas e das fontes cristalinas, farejando as chuvas e a estação dos frutos, contemplando vivamente o rebojo natural dos ciclos vitais e das safras dadivosas.
E quantas tardes não o presenciamos em comunhão com a água viva das bicas, em magníficos banhos de açude, na vagareza de seus movimentos, em véspera do primeiro trago...
--- Ah, como são belos os dias no resplendor da existência... O mar é um lago sereno, o céu é um manto azulado, a vida um ninho dourado, e tudo é um romance de amor...
Aludia como poucos às tristezas e às mazelas da vida, pescando versos esquecidos na sanga de seus mestres favoritos.

"Caminheiro que passa pela estrada seguindo o rumo do sertão, se vires uma cruz abandonada, deixe-a em paz, dormir na solidão. É de um escravo a humilde sepultura..."

Carolina, ao pé do leito derradeiro, em que descansas desta longa vida, aqui venho e virei sempre, pobre querida, trazer-te o coração do companheiro...
Rolar no pó, cair desfalecido em supremo revés... Chegar enfim, ao fastígio da idade e ver que a felicidade ficou além, muito além d'onde espectros passamos, ficou além da flor que calcamos aos pés...
 
Ao ver-te, vira-lata, no abandono, a roer ossos, sem ninguém, sem dono, tenho pena de ti, cão vagabundo, pois vivo como tu, desde menino, recebendo pedradas do destino e virando a grande lata deste mundo...
 
Aos filhos do Zé Amélio, o Fernando, a Lena, o Pauloca, o Zé Amelinho, o Eduardo, o Luís Antônio, ao Celso, à Nize Lane e todas as tias "Lúcia", os netos, os bisnetos e a toda essa grandiosa família, a amizade, o apreço, a admiração e o respeito à memória deste homem que foi, acima de tudo, um pai amigo e um exemplo vivo de amor aos nossos valores intelectuais e morais.
Quanto a nós, conforme ele próprio dizia, que formamos uma imensa caravana que marcha continuamente para o nada, fica uma pergunta no ar:
Felicidade, onde estás felicidade?
Felicidade, sonho azul da mocidade...

José Márcio Castro Alves - Ribeirão Preto, 10 de julho de 2.001.